domingo, 24 de janeiro de 2016

Uso de "presidenta" no século XIX é maior, mais polissêmico e mais antigo do que se supõe

Já tratamos da correção gramatical (isto é, do aspecto prescritivo, normativo) da palavra “presidenta” em artigo anterior deste blog – O sufixo proibido. Aqui neste artigo, fazemos somente um adendo de curiosidade sobre seus primórdios e usos.

Há quem enfatize, inclusive com o propósito de contribuir para desqualificar sua adequação e correção, o surgimento da palavra “presidenta”  com sentido exclusivamente jocoso (As Sabichonas, tradução de peça de Molière pelo escritor português António Feliciano de Castilho) em 1872: “Mais gratidão lhe devo, immortal presidenta” (p. 128); “À nossa presidenta, e às minhas sócias, peço se dignem perdoar-me o intempestivo excesso” (p. 153); “Nada, nada! Escusa, presidenta, de insistir mais” (p. 230). Diversos achados de princípios e meados do século XIX, no entanto, evidenciam que, ainda que de forma restrita, tanto portugueses quanto brasileiros já flexionavam presidente” no gênero feminino em jornais e obras literárias com os mais diversos usos além do meramente cômico — e bem antes de Castilho.

Registremos a seguir alguns exemplos.

Ao contrário do que frequentemente se supõe, o primeiro registro DICIONARIZADO não ocorre posteriormente por meio de Cândido de Figueiredo (1912), mas 100 anos antes, já em 1812, no Diccionario portatil portuguez-frances e francez-portuguez, de Domingos Borges de Barros, diplomata e senador brasileiro (p. 347):




Nessa mesma década, o jornal Gazeta de Lisboa registra, numa edição de 1818, uma corveta chamada “Presidenta




Historias de meninos para quem não for creança, de António Lobo de Barbosa Ferreira Teixeira (1835), faz menção a uma marquesa como “presidenta”:



Num contexto certamente menos sério, é usada em Motim literario em fórma de soliloquios, de José Agostinho de Macedo, tomo III (1841):



Uma edição de 1858 do Archivo pittoresco, jornal de Lisboa, chega a conter – entre notícias e contos – dez ocorrências da palavra; numa delas, com o sentido de cargo exercido por mulher:

“[...] entraram no novo mosteiro as religiosas [...] em solemne procissão, por meio das acclamações. Como presidenta ia a madre Maria Espírito Santo, filha de [...].” (p. 306)
... e, em outras, como mulher do presidente (no conto Ressuscitada por amor, como esposa do presidente do Parlamento de Paris):
“Sim, a presidenta de Boissieux é a mesma Clemência...” (p. 320)
“[...] em que viu celebrar os funeraes da presidenta [...].” (p. 326)
“[...] vigia cuidadosamente o túmulo da presidenta.” (p. 326)
“[...] pela exhumação se verificou que o corpo da presidenta não estava sepultado.” (p. 326)

... Tudo isso bem antes de escritores clássicos como Machado de Assis, Camilo Castelo Branco e Feliciano de Castilho registrarem o termo em suas obras.

Como já dissemos, a questão prescritiva, normativa já foi abordada em outro artigo deste blog (além de seu crescente uso no decorrer do século XX). No entanto, vale repetir e reforçar aqui que, quanto a considerá-la pejorativa, a normalização da palavra por vários gramáticos, como Rocha Lima (1959), Bechara (1963), Luft (1966), Cegalla (1996) Sacconi (2005) etc., são suficientes para evidenciar não apenas sua correção como também seu uso além do sentido exclusivamente pejorativo que ela possa ter apresentado no passado (que, como vimos aqui, nunca foi, de fato, o único sentido).

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